Cada animal possui no núcleo de suas células diversos cromossomos agrupados em pares, formados por estruturas denominadas DNA. As “unidades básicas” do DNA, responsáveis pela expressão das características do indivíduo são denominadas genes que, simplificadamente seriam “um pedacinho do DNA”, cuja localização é denominada locus.
Certas características dos indivíduos são dependentes de um único par de genes (cor dos olhos, por exemplo) localizadas do mesmo locus dos pares de cromossomos, já outras, dependem de uma combinação de diversos genes (produção leiteira por exemplo). Na reprodução, cada animal recebe 50% de seus genes do pai (espermatozoide), e 50% dos genes da mãe (óvulo).
Num acasalamento de dois indivíduos, quanto mais aparentados forem eles, maiores as chances de que seus descendentes possuam um percentual maior de genes idênticos (homozigose), que seriam cópias do gene presente no ancestral em comum e que se transmitem aos filhos, ocorrendo o inverso, quanto menos forem aparentados os ancestrais em comum (heterozigose). Lembremos que todos os animais dentro de uma população têm alguma relação entre si posto que descenderam em algum lugar e em algum momento de algum ancestral em comum.
A fim de avaliar o “grau de parentesco” ou probabilidade de existência de genes em comum com seus ancestrais foi definido um coeficiente de consanguinidade ou de endogamia que é a metade do grau de parentesco entre os pais do indivíduo, expresso em porcentagem e é medida pelos ancestrais em comum que o mesmo possui de forma que quanto mais aparentados forem os ancestrais, maior a endogamia no seu acasalamento e portanto, maiores as chances de possuir genes idênticos ao dos ancestrais comuns.
Exemplo de alguns acasalamentos endogâmicos e seus respectivos coeficientes de endogamia: Teoricamente uma maior freqüência de genes idênticos responsáveis por características positivas (produtivas, por exemplo) num indivíduo é um dos objetivos do processo de melhoramento dos rebanhos, assim, pareceria lógico que se acasalássemos indivíduos de alta produtividade aparentados entre si teríamos maiores chances de obtermos uma progênie igualmente mais produtiva.
RAZOOK (1977), em um amplo trabalho de revisão, relata a utilização da endogamia até mesmo para formação de raças de corte e leite de valor indiscutível, como Hereford, Shorthorn, Holstein-Friesian e outras, terminando por dizer que a mesma consanguinidade deve ter tido um papel bastante significante na formação das raças zebuínas.
Ocorre porém, que, com a maior consanguinidade, também os genes “negativos” presentes nos ancestrais se apresentariam com maior freqüência nos descendentes. Ou seja,a endogamia em si, não produz genes deletérios ou que causem anomalias congênitas, mas, se presentes
nos pais, podem levar a um aumento de sua freqüência nos descendentes em homozigose (genes idênticos no mesmo locus dos pares de cromossomos) e, algumas doenças somente se manifestam quando em homozigose, como a acondroplasia, a agnatia,; cabeça buldogue ou
prognatismo; hérnia cerebral, espasmos letais congênitos; catarata congênita; membros curvos; epilepsia; lábio leporino; alopecia, hidrocefalia, hipoplasia de ovário ou testículo, espinha curta; hérnia umbilical, cauda torcida, entre outras, sendo algumas delas letais.
Problemas que surgem com a utilização da endogamia que são letais ou semiletais são facilmente identificados, mas pequenos “problemas” que na verdade são combinações gênicas desfavoráveis, não são facilmente identificados, e estas combinações indesejadas ocorrendo no indivíduo, leva ao que se conhece por depressão endogâmica, pela qual, a partir de um certo grau de consanguinidade ao invés de observarmos uma melhora das características presentes nos pais, observa-se uma redução nas mesmas.
Vários são os estudos em que se demonstram perdas por depressão endogâmica, como o de SMITH et al. (1998), que trabalharam com vacas holandesas, e calcularam que para cada 1% de aumento no coeficiente de endogamia, houve perda aproximada de 37 kg de leite, 1,2 kg de gordura, 1,2 kg de proteína por lactação, além da idade ao primeiro parto ter aumentado em 0,4 dias, o intervalo entre partos em 0,3 e a vida produtiva diminuído em 13,1 dias.
SCHENKEL et al. (2002), trabalhando com arquivos da ABCZ, estimaram que, na média das raças zebuínas, para cada 10% de aumento na endogamia individual, o ganho médio diário ajustado para 205 dias e o para 550 dias foram reduzidos em 1,7% e 2,1% em relação a média da população estudada.
Baseado na literatura, pode-se dizer grosseiramente que a cada incremento em 10% no coeficiente de endogamia, há depressão de 2% a 7% nas características de vigor, produtivas e reprodutivas. JOHANSSON & RENDEL (1968), mencionam trabalhos norte americanos a respeito da influência da consanguinidade que apontam para perdas em características reprodutivas e de vigor, e que relatam a ocorrência de uma mortalidade embrionária 15% mais alta, no caso de vaca consanguínea, e ainda maiores, quando a vaca consanguínea foi
acasalada com touro aparentado com ela própria. Outro resultado bastante expressivo, foi o de 36% de prenhes diagnosticada de touros consanguíneos acasalados com vacas consanguíneas, contra 65,7% entre acasalamentos de animais não aparentados e não consanguíneos.
Por outro lado, certas características produtivas melhoram em indivíduos com baixos níveis de consanguinidade (heterose ou “vigor híbrido”) em decorrência das combinações gênicas favoráveis, conseqüência do aumento de genes em heterozigose. Esse aumento em desempenho é somente, parcialmente transmitido às futuras gerações, e é conseguido
principalmente com um acasalamento bem sucedido A natureza é sábia, e com este tipo de mecanismo permite uma maior sobrevivência de indivíduos não consanguíneos, mantendo assim uma maior variabilidade genética nas espécies, dificultando que as mesmas possam vir a se extinguir devido à falta de adaptação a alguma adversidade do ambiente.
A despeito de ser possível a utilização da endogamia no processo de melhoramento JOHANSSON & RENDEL (1968), citados por RAZOOK (1977), trabalhando com rebanhos consanguíneos e posteriormente cruzando as diferentes linhagens em gado Holandês concluem que: “A imprevisibilidade da consanguinidade em rebanhos de diferentes origens, a tendência a uma redução da eficiência produtiva e a falta de uniformidade na “performance” de indivíduos consanguíneos desencorajam o desenvolvimento de linhagens consanguíneas
como meio geral para melhoramento do gado leiteiro. O desenvolvimento e a manutenção de linhagens consangúineas será muito oneroso e o cruzamento de tais linhagens pode não favorecer indivíduos claramente superiores a indivíduos provenientes de cruzamento com outros rebanhos exteriores não consanguíneos.” O fato é que a endogamia acarreta em perdas produtivas e reprodutivas, porém trabalhar linhagens em moderados níveis de parentesco de um ancestral provado, pode ser uma boa opção para imprimir características dsejadas de uma determinada família. Em função disso, a recomendação geral nos processos de melhoramento dos rebanhos tem sido a de se buscar acasalar animais de alto potencial produtivo, porém, com o menor coeficiente de endogamia possível, visando aumentar nos descendentes a presença de genes responsáveis pelas características que se busca (raciais, produtivas, de conformação, etc.) ao mesmo tempo em que se evita a referida “depressão endogâmica” e paralelamente se consegue obter algum grau de heterose. Modernos métodos de avaliação genética e aplicáveis a grandes contingentes populacionais (como o BLUP-modelo
animal), têm permitido a identificação dos indivíduos de melhor potencial genético para uma determinada característica ou grupo de características almejadas, e são expressos em índices como BV (Breeding Value), PTA (habilidade de transmissão), DEP (desenvolvimento esperado
na progênie) de expressão quantitativa e que permitem “classificar” os animais em função das características avaliadas e costumam ser divulgados nos tradicionais “rankings” e “sumários”.(*)
As modernas biotecnologias de reprodução (inseminação artificial, transferência de embriões, e quem sabe até mesmo a clonagem no futuro) e sua popularização, têm permitido a rápida multiplicação de um determinado indivíduo o que vem ocorrendo em nosso meio por exemplo
em zebuínos onde se busca multiplicar os animais melhores classificados nos sumários.
Uma das conseqüências são resultados preocupantes como os publicados por FARIA et al. (2001), que observou que, no período de 1994 a 1998, apenas 10 touros foram pais de 19,3% dos animais da raça Nelore nascidos no Brasil e, ainda que o aumento de consanguinidade por
geração na raça tem sido da mesma magnitude da que se observaria em uma pequena população, constituída de 34 machos e 34 fêmeas acasalando-se ao acaso e deixando um casal de filhos cada.
A bubalinocultura brasileira, ainda que por motivos diversos tais como: baixo volume de importações, pequena quantidade de rebanhos sob controle zootécnico, baixo intercâmbio comercial inter-regional, etc potencialmente tem os mesmos problemas descritos para os zebuínos. Numa fase inicial, principalmente a partir das décadas de 70-80, despertou-se enorme interesse entre os criadores na busca de animais com padrões raciais bem definidos, o que mais facilmente era obtido com a utilização de animais descendentes dos importados originais e suas progênies, a quem se denominam “POI”, que quantitativamente, eram em
reduzidíssimo número, resultando que rebanhos que buscavam se fechar em tais linhagens, certamente possuem alto grau de endogamia.
As raras importações de material genético principalmente a partir da década de 60 ( sêmen da Bulgária e da Itália, e alguns poucos exemplares italianos), a despeito de terem sido muito pouco utilizadas em nosso meio, também provinham de rebanhos com elevado grau de consanguinidade (na Itália, por exemplo, há séculos não existe a introdução de animais de outros países e os dois animais com sêmen búlgaro introduzido no país eram filhos da mesma mãe).
A dificuldade de utilização de animais“puros” porém acabou fvorecendo os acasalamentos visando formações raciais por “absorção”, passíveis de registro em Livro Aberto (LA) e após algumas gerações, reconhecidos como puros o que, se por um lado acaba gerando animais com menor repetibilidade de características em suas progênies para perfeito enquadramento nos padrões raciais admitidos, por outro lado, carregam menor dose de consanguinidade, o que evita seus efeitos depressivos nas características de interesse econômico.
Em trabalho apresentado no Congresso das Filipinas em 2004, Ramos et al. aferiram os efeitos de depressão endogâmica na produção leiteira de búfalos no Brasil, concluindo que a mesma ocorre quando o coeficiente de endogamia ultrapassa 6-7%, conclusão de certa forma concordante com trabalho de Vasconcelos que em rebanho com coeficiente médio de consanguinidade de 6%, não havia observado depressão da produção leiteira atribuível a tais níveis de consanguinidade. Infelizmente no Brasil são ainda pouco comuns propriedades que submetam seus rebanhos a controle zootécnico e genealógico resultado daí que, na elaboração de avaliações de potencial genético produtivo, somente uma pequena parcela do rebanho tem sido avaliada utilizando-se as técnicas hoje disponíveis o que, se persistindo, acabará por identificar poucos animais de mérito superior e conseqüentemente, uma superutilização dos mesmos e com conseqüente aumento da consanguinidade de nossos rebanhos, tendência já constatada no trabalho de Ramos e que, a exemplo dos zebuínos, poderá se transformar num problema.
Acreditamos que a diversidade de nosso “rebanho de base”, formado principalmente por animais mestiços e LA, caso despertem os criadores para a necessidade do controle zootécnico e genealógico de seus rebanhos, permitiria que identificássemos em maior quantidade indivíduos de mérito produtivo superior e não consangüíneos, reduzindo tal problema em potencial
Originalmente publicado no Boletim de Búfalo nº 2 – 2005 (Baseado em monografia de William Koury Filho – Zootecnista – william@brasilcomz.com)
(*) atualmente avaliações de genômicas já se encontram disponíveis para aferição de diversas características produtivas, aumentando a acurácia das avaliações.